Esses dias dei um banho no meu gato, o Fred,
e não pude deixar de perceber que ele já não é só um simples bichano. Fred
agora é um planeta. Poderia atribuir “VB12 41 9” como nome, ou algo nessa linha,
mas diferente da NASA, prefiro ser original - eu também não ia lembrar um
código desses. O fato é que depois do banho, ao pentear seu pelo, deparei-me
com um pontinho preto saltitante dançando no meio dos fiozinhos da orelha na
coreografia de Gene Kelly em “Cantando na chuva”. Minha expressão imagino ter
sido de surpresa e o que me lembro de fazer depois de sair do transe foi
agarrar com a pontinha das unhas do indicador e polegar a curiosa criaturinha.
Se eu fosse leiga no quesito Fred ou ainda que apenas observasse a situação com
olhos despretensiosos, diria se tratar de uma simples pulga.
Caro leitor, a pretensão em mim corre solta.
Não, não era só uma pulga. Longe disso. Aquela notável pulga, com esforço e dedicação, seria o novo Baryshnikov. Alguém deveria descobri-la
e apresentá-la a um grande da dança. Alguma Ana
Botafogo, uma vez que Fred fica na galáxia Brasil. Arriscaria até dizer que
seu Tour Jeté era perfeito, pois em
uma fração de segundos a bichinha pulou de meus dedos, girou no ar quase em câmera
lenta, como se ouvisse o violinos ao fundo e pousou na nuca do gato, desaparecendo
ágil antes que eu esboçasse qualquer reação. Sequer esperou pelas palmas. Deveria
ter prosseguido a escovação. Deveria tê-la deixado ir, mas eu queria conhecer mais
dos emaranhados e misteriosos pelos.
Posicionei Fred em cima de uma toalha branca-
sob miados protestantes, e pus-me a desbravar o admirável cenário. O “trás dos
montes” da cabeça peluda. Devo dizer, o lugar é bastante interessante. Assemelha-se
a uma cidade bem desenvolvida. A parte de cima, coberta por fios curtos faz jus
a uma aparada plantação. A finura na base e o espigo na extremidade superior
indica nitidamente ser de milho. Do lado leste encontrei os anfitriões. Pulgas
muito simples, mas hospitaleiras e amáveis. Uma família pequena: pai, mãe e a lendinha. Cuidavam do replantio. Abaixo, na curvatura do tronco, vi com
prestígio o grande vale que abriga a cidade. Formado há muitos anos, antes da
grande castração, na era Paleozóica, quando Fred ainda era magro. Essa
magnífica formação geológica é o lar de cerca de 20 a 30, 5 cidadãos. Sem
dúvida, disparadamente a mais populosa metrópole. Um luxo. Bem desenvolvida, sulcos-estradas
bem construídas, sangue bom - viscoso como o mais caro cimento, mão-de-obra
naturalmente especializada, fora o processo de cicatrização desempenhado com
sucesso. As autoridades se mostram competentes na administração. Há poucas
casas. Os pontinhos pretos se amontoam um em cima do outro indicando a predominância
dos apartamentos. Tudo isso sem descuidar das áreas reflorestadas, uma vez que todo
o pelo desmatado tem espaço para crescer novamente.
Minha curiosidade e fascínio só fizeram
aumentar. Busquei outros locais. Passei a examinar o queixo e o que encontrei
por lá foi um contraste notável. Diferentemente da sociedade desenvolvida da nuca,
no queixo o modo de vida é milenar. A população sobrevive não só do sangue –
abundante na região- como faz também diversas viagens às margens da boca.
Durante o tempo em que fiquei por ali, notei que a língua funciona como o leito
do mar, banhado periodicamente pelas ondas-saliva. Em época de tempestades,
estas pulgas Fenícias se abrigam na caverna localizada no espaço mais estreito
do pescoço, a articulação. Adaptadas, elas desenvolveram um calendário próprio para
calcular o intervalo de chegada das cheias. Mais ou menos de quatro em quatro
horas, quando o Fred toma água.
Apesar da vontade de explorar as patas,
realizar a rotação de um planeta estressado por um banho longo e já cansado de
ser feito -dele mesmo- e sapato não é
simples. Pode vir a ser até abuso. Resolvi, então, ignorá-las partindo do
pressuposto de que a extremidade sul raramente recebe sol e como a Antártida da
Terra, a vida lá deve ser deixada em certa paz.
Foquei na milha que me restava para chegar à
savana. Estendendo-se por todo o tronco mais o rabo, este vasto e selvagem
território é uma incógnita para os pesquisadores. A vegetação que o recobre é
sumamente densa e, por se tratar da pelagem com mais coloração de todo o
felino, dificulta observar as criaturas que ali habitam. Meu imaginário se
fortalece criando figuras canibais, rituais antropofágicos, pontinhos pretos
das mais diversas culturas e anatomias, confesso que cheguei a ter à mão um
óculos escuro, caso me deparasse pelo caminho com uma pulga munida de lança ou
arco e flecha, porém, após muito remexer na latitude que me cabia não observei
nada mais que novas formas de pelo molhado.
O ponto final de minha expedição era o
verdadeiro desafio. O que os antigos chamam de: “A Cola”. Essa pequena
localidade, abrigada num cantinho escuro abaixo da cauda é um lugar, para
muitos, inóspito. Abafado, úmido e de odor fétido. Talvez, os fenícios tenham
se mudado daqui para a boca em busca de uma vida com mais frescor. Talvez esta
seja a localização real do Triângulo das Bermudas. Não sei ao certo. Não fiquei
muito tempo. Apressava-me a sair pensando nas possíveis sequelas que a
experiência poderia deixar ao meu aparelho respiratório. Entretanto, gostaria
de relatar o que me ocorreu no momento em que me afastava.
Um singelo pontinho preto rasgou com
determinação a relva macia precedente do redemoinho e lá dentro, com a coragem
de Hércules, se jogou sem medo do pior, segura do seu nado, como se fosse o
próprio Poseidon. Ao perdê-la de vista, pensei comigo: será ela uma originária
dos interiores ou uma perdida neste labirinto que ansiando como nunca a hora de
encontrar o fim atirou-se nas trevas de um futuro incerto?
Tudo pode ser como também nada. Numa coisa eu
creio. Em toda a sociedade, sempre há o maldito tiro que insiste em sair pela
culatra.
Juliana*
Juliana*